1°lugar:
André Luís Soares.
Título: Futebol – uma arte do passado.
Pseudônimo: Meia-Lua Inteira.
Cidade: Guarapari-ES.
Pontuação: 440.
FUTEBOL – UMA ARTE DO PASSADO
Hoje
acordei incomodado pelo máximo silêncio. De modo estranho, após muitos anos,
somente agora percebi que há tempos não mais ouço a gritaria comum ao jogo de
bola das crianças. Em meu bairro à beira-mar, no qual vê-se a mescla de belos
prédios e casas, o futebol – minha maior referência da infância – desapareceu
sem que eu percebesse, levando junto boas doses de pureza e de alegria.
Melancólico, lembrei-me da antiga canção de Cat Stevens, a qual questiona: '–
Onde as crianças brincam?' ('Where do the
Children Play?').
No
Brasil, por muitas décadas, o futebol desenvolveu importante função, sendo o
único esporte capaz de fazer surgir o orgulho nacional. Naquela época,
praticamente todos os brasileiros eram apaixonados pela bola. Futebol era tema
predominante em todas as rodas de boteco. O futebol ditava a moda: todos os
dias, bastava sair às ruas para ver a imensa gama de pessoas trajando o
uniforme do clube de coração. Após três títulos mundiais, o futebol
incrustara-se na alma do povo brasileiro, de modo tão especial, que nem mesmo a
fome e a truculência da ditadura militar puderam abalar.
Tamanha
era a paixão pelo futebol que, em todas as cidades do país, os jovens sequer
precisavam que houvesse bola. De preço elevado, a 'pelota' –
como se costumava chamar carinhosamente – não raro era substituída por sacos
plásticos, recheados de pano; tufos de papel; meias velhas emboladas ou, até
mesmo, uma mera laranja. Isso porque, pelo prisma socioeconômico, o auge do
futebol brasileiro coincidiu com os piores anos do país. Jogar bola tornara-se
um sonho: uma possibilidade remota de ascensão social; uma porta que, vez ou
outra, abria-se para algum felizardo, o qual, milagrosamente, era catapultado a
um status jamais imaginado, passando
de reles joão-ninguém à condição de
herói – aclamado pelos homens, desejado pelas mulheres.
Ininterruptamente,
o Brasil vivia futebol de todas as formas. Campos de chão-batido brotavam nas
periferias, onde jovens disputavam acirrados torneios, usando camisas coloridas
à base de Tintol. Nos bairros mais
modernos, pequenas traves fizeram nascer o 'golzinho' – variação do futebol
para quem, por falta de espaço, apelava para o improviso. O jogo de botões e o
'pebolim' – também batizado de totó –
trouxeram o futebol para dentro das casas, para as calçadas e para os pátios
dos colégios. O futebol de salão e o futebol de praia constituíram versões mais
recentes, adotadas pela classe média. Por fim, o álbum de figurinhas,
estampando os rostos dos atletas, tornou-se a primeira e mais popular forma de
documentar essa paixão.
A
simplicidade do povo, que sonhava livrar-se da pobreza extrema por meio do
esporte bretão, ficava explícita nos apelidos dos craques. Diferente dos
complexos nomes compostos que se vê nos gramados atualmente, o auge do futebol
brasileiro tinha por excelência a ingenuidade infantil das redutivas alcunhas
bissílabas: Didi, Dadá, Dito, Vavá, Tostão... Pelé – este último, nascido no
interior de Minas Gerais, foi o negro pobre que se tornara 'rei'. Para o resto
do mundo, por décadas, Pelé seria o próprio sinônimo de Brasil.
Tudo
estava envolto em uma aura criativa tão fantástica, que mesmo quando não havia
pessoas em número suficiente para uma partida de futebol, o brasileiro se
divertia vendo quem conseguia fazer mais embaixadinhas.
De pouca leitura e com pouco vínculo com as demais artes, o brasileiro se
resumia a futebol e carnaval, unindo-os sempre que possível. Muitas foram as
canções que retrataram a 'paixão nacional'. Da mesma forma, incontáveis foram
os jogadores que sambaram após fazer um gol. Exímio dançarino, Garrincha elevou
ao extremo essa mágica junção entre esporte e arte, com dribles desconcertantes
que mais pareciam movimentos graciosos de algum passista a desfilar na avenida.
O
problema é que o 'país do futebol' era também o Brasil que comia mal e que não
estudava – ou que, muitas vezes, matava aula para jogar bola. O Brasil era,
ainda, o país do continuísmo e dos determinismos econômico e geográfico. Certo
dia veio a globalização e a necessidade de mudança se fez maior. Na rota da
fortuna, os atletas profissionais trocaram seus times de coração pelos clubes
estrangeiros. Paralelo a isso, a industrialização se fez intensa, afetando a
composição dos lares – para melhor e para pior. Nem mesmo outros dois títulos
mundiais puderam evitar que novas paixões caíssem nas graças do povo. Hoje,
mergulhado em corrupção e uniformes repletos de propagandas, o futebol perdeu o
encantamento e seus dias mais gloriosos pertencem ao passado.
Há
poucos dias um velho amigo me convidou para uma pelada de domingo. De início, confesso que fiquei animado. Mas aí
ele avisou que eu teria que contribuir para o aluguel do campo de futebol
'soçaite'. Indignado, declinei: pois sou do tempo do futebol de rua; das
vidraças quebradas; do clássico 'casados versus
solteiros'; da partida que só se interrompia para ver passar mulher bonita; dos
campos de várzea, onde jogadores maltrapilhos e descalços saíam na mão quando o juiz marcava pênalti.
(...)
Estava
já revisando esta crônica quando ouvi eufóricos gritos de 'gol'. Saí à janela
na esperança de estar errado, ainda que isso significasse ter que refazer meus
escritos. Qual nada! Pasmo, avistei, no apartamento em frente, dois
adolescentes sentados em um elegante sofá, empunhando manetes de Playstation. Definitivamente... não se
fazem mais craques como antigamente! Contudo... ao menos agora já sei onde as
crianças brincam.
(Pseudônimo: 'Meia-Lua Inteira')
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