quinta-feira, 30 de novembro de 2017

1°lugar do Prêmio 2017


1°lugar:
André Luís Soares.
Título: Futebol – uma arte do passado.
Pseudônimo: Meia-Lua Inteira.
Cidade: Guarapari-ES.
Pontuação: 440.


FUTEBOL – UMA ARTE DO PASSADO

Hoje acordei incomodado pelo máximo silêncio. De modo estranho, após muitos anos, somente agora percebi que há tempos não mais ouço a gritaria comum ao jogo de bola das crianças. Em meu bairro à beira-mar, no qual vê-se a mescla de belos prédios e casas, o futebol – minha maior referência da infância – desapareceu sem que eu percebesse, levando junto boas doses de pureza e de alegria. Melancólico, lembrei-me da antiga canção de Cat Stevens, a qual questiona: '– Onde as crianças brincam?' ('Where do the Children Play?').
No Brasil, por muitas décadas, o futebol desenvolveu importante função, sendo o único esporte capaz de fazer surgir o orgulho nacional. Naquela época, praticamente todos os brasileiros eram apaixonados pela bola. Futebol era tema predominante em todas as rodas de boteco. O futebol ditava a moda: todos os dias, bastava sair às ruas para ver a imensa gama de pessoas trajando o uniforme do clube de coração. Após três títulos mundiais, o futebol incrustara-se na alma do povo brasileiro, de modo tão especial, que nem mesmo a fome e a truculência da ditadura militar puderam abalar.
Tamanha era a paixão pelo futebol que, em todas as cidades do país, os jovens sequer precisavam que houvesse bola. De preço elevado, a 'pelota' – como se costumava chamar carinhosamente – não raro era substituída por sacos plásticos, recheados de pano; tufos de papel; meias velhas emboladas ou, até mesmo, uma mera laranja. Isso porque, pelo prisma socioeconômico, o auge do futebol brasileiro coincidiu com os piores anos do país. Jogar bola tornara-se um sonho: uma possibilidade remota de ascensão social; uma porta que, vez ou outra, abria-se para algum felizardo, o qual, milagrosamente, era catapultado a um status jamais imaginado, passando de reles joão-ninguém à condição de herói – aclamado pelos homens, desejado pelas mulheres.
Ininterruptamente, o Brasil vivia futebol de todas as formas. Campos de chão-batido brotavam nas periferias, onde jovens disputavam acirrados torneios, usando camisas coloridas à base de Tintol. Nos bairros mais modernos, pequenas traves fizeram nascer o 'golzinho' – variação do futebol para quem, por falta de espaço, apelava para o improviso. O jogo de botões e o 'pebolim' – também batizado de totó – trouxeram o futebol para dentro das casas, para as calçadas e para os pátios dos colégios. O futebol de salão e o futebol de praia constituíram versões mais recentes, adotadas pela classe média. Por fim, o álbum de figurinhas, estampando os rostos dos atletas, tornou-se a primeira e mais popular forma de documentar essa paixão.
A simplicidade do povo, que sonhava livrar-se da pobreza extrema por meio do esporte bretão, ficava explícita nos apelidos dos craques. Diferente dos complexos nomes compostos que se vê nos gramados atualmente, o auge do futebol brasileiro tinha por excelência a ingenuidade infantil das redutivas alcunhas bissílabas: Didi, Dadá, Dito, Vavá, Tostão... Pelé – este último, nascido no interior de Minas Gerais, foi o negro pobre que se tornara 'rei'. Para o resto do mundo, por décadas, Pelé seria o próprio sinônimo de Brasil.
Tudo estava envolto em uma aura criativa tão fantástica, que mesmo quando não havia pessoas em número suficiente para uma partida de futebol, o brasileiro se divertia vendo quem conseguia fazer mais embaixadinhas. De pouca leitura e com pouco vínculo com as demais artes, o brasileiro se resumia a futebol e carnaval, unindo-os sempre que possível. Muitas foram as canções que retrataram a 'paixão nacional'. Da mesma forma, incontáveis foram os jogadores que sambaram após fazer um gol. Exímio dançarino, Garrincha elevou ao extremo essa mágica junção entre esporte e arte, com dribles desconcertantes que mais pareciam movimentos graciosos de algum passista a desfilar na avenida.
O problema é que o 'país do futebol' era também o Brasil que comia mal e que não estudava – ou que, muitas vezes, matava aula para jogar bola. O Brasil era, ainda, o país do continuísmo e dos determinismos econômico e geográfico. Certo dia veio a globalização e a necessidade de mudança se fez maior. Na rota da fortuna, os atletas profissionais trocaram seus times de coração pelos clubes estrangeiros. Paralelo a isso, a industrialização se fez intensa, afetando a composição dos lares – para melhor e para pior. Nem mesmo outros dois títulos mundiais puderam evitar que novas paixões caíssem nas graças do povo. Hoje, mergulhado em corrupção e uniformes repletos de propagandas, o futebol perdeu o encantamento e seus dias mais gloriosos pertencem ao passado.
Há poucos dias um velho amigo me convidou para uma pelada de domingo. De início, confesso que fiquei animado. Mas aí ele avisou que eu teria que contribuir para o aluguel do campo de futebol 'soçaite'. Indignado, declinei: pois sou do tempo do futebol de rua; das vidraças quebradas; do clássico 'casados versus solteiros'; da partida que só se interrompia para ver passar mulher bonita; dos campos de várzea, onde jogadores maltrapilhos e descalços saíam na mão quando o juiz marcava pênalti.
(...)
Estava já revisando esta crônica quando ouvi eufóricos gritos de 'gol'. Saí à janela na esperança de estar errado, ainda que isso significasse ter que refazer meus escritos. Qual nada! Pasmo, avistei, no apartamento em frente, dois adolescentes sentados em um elegante sofá, empunhando manetes de Playstation. Definitivamente... não se fazem mais craques como antigamente! Contudo... ao menos agora já sei onde as crianças brincam.

(Pseudônimo: 'Meia-Lua Inteira')

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