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lugar:
André Luís Soares.
Crônica: Asas da Liberdade pra quê?
Cidade: Guarapari/ES.
Pontuação: 494.
ASAS DA LIBERDADE PRA QUÊ?
Nos anos setenta, do século passado, havia uma conhecida marca de jeans
cujo jingle dizia: ‘liberdade é uma calça velha, azul e desbotada, que você usa
quando quiser, do jeito que quiser’. No entanto, liberdade é algo bem mais
complexo e difícil de ser conceituado do que poderiam supor os marqueteiros da
‘Us-Top’.
No Brasil – último país independente da América a abolir a escravidão
–, a liberdade tem oscilado entre o patamar utópico difundido entre os melhores
filósofos e a vontade mesquinha dos poderosos. Nação onde mais se matam
ambientalistas e líderes sindicais ou comunitários, por aqui a liberdade é
sinônimo de perigo, especialmente quando vinculada a questões de interesse
coletivo. Dessa forma, incorrendo no risco de ser egoísta, a maioria acaba
buscando-a somente no plano individual onde, não raro, é confundida com a
alegria fugaz decorrente da embriaguez excessiva, da direção perigosa e da
música ouvida em decibéis suficientes para incomodar vizinhos. Daí a natural
indagação: que grau de liberdade os brasileiros querem?
Tomando-se por base a cultura do jeitinho e da lei de Gerson, é de se
imaginar que a plena liberdade não resultaria em boa coisa em terras
tupiniquins, visto ser impensável conciliar ordem e progresso ao amplo direito
de todos fazerem tudo o que lhes der na telha. Contudo, há que reconhecer que,
para ser feliz, o brasileiro necessita de algumas pequenas permissividades.
Povo secularmente acostumado a ter pouco, foi somente nas últimas duas ou três
décadas que – em grande medida – a população pôde desfrutar alguns pequenos
confortos.
A cervejinha é, por certo, um desses mínimos regozijos. Quando eu era
criança, quase todos os homens adultos bebiam cachaça ou variações rudimentares
igualmente fortes. A escassez de grana os obrigava a adotarem formas rápidas e
baratas de se embebedar. Dificilmente alguém falava em vinho que não fosse pra
lá de fuleiro. Champanhe era só aquele líquido que os vencedores derramavam na
cabeça, uns dos outros, ao fim das corridas de Fórmula 1. Mesmo o chopp ainda
parecia excesso inatingível para a maioria que, a partir da segunda semana de
cada mês, não mais sabia a cor do dinheiro.
O turismo é outro prazer que o brasileiro descobriu recentemente. Não
faz muitos anos, parte considerável das viagens tinha por único destino a casa
de parentes. Hotéis, resorts, viagem de avião, aluguel de veículos... nem
pensar! Com a chegada das visitas era um verdadeiro deus-nos-acuda: os
anfitriões se viam obrigados a dormir ainda mais apertados que de costume, além
de terem que acrescentar mais água ao já excessivamente ralo caldo de feijão.
Bem ao estilo das piores comédias-pastelão, não raro essas incursões terminavam
em desavenças familiares, cuja vingança era obrigar os intrusos a devolverem a
hospitalidade nas férias seguintes.
Não obstante, o automóvel constitui o ponto mais elevado da saga
brasileira em busca de liberdade. Por várias décadas, nossas ruas e estradas
eram o paraíso dos veículos feios, sujos, velhos e barulhentos. Fato ainda pior
é que poucos motoristas tinham condições de encher o tanque ou fazer revisões
no motor. Muitos carros só andavam no cheiro. O resultado dessa triste
combinação era a costumeira cena em que se viam pessoas sofrendo para empurrar
as latas-velhas até o posto de gasolina ou até a oficina mais próxima – de onde
algumas jamais sairiam.
No mais, o brasileiro médio vivia na corda-bamba, matando um leão por
dia. Espremido entre a fome e as dívidas, não lhe restava outra coisa a fazer
senão espichar os olhos invejosos para o deleite material que cabia somente aos
pouquíssimos privilegiados, os quais faziam viagens internacionais, exibiam
automóveis luxuosos, mandavam os filhos estudarem na Europa. Enfim... faziam
todas as coisas possíveis aos que deitam e rolam na grana. Liberdade? Esse
termo era suscitado – à meia-boca e à meia-luz – entre uma e outra ditadura. À
voz do povo era dado apenas o direito de transladar entre o grito de gol e o
batuque do samba. Quem ousasse voar fora desse quadrado tinha suas asas
cortadas, à custa de tortura e morte.
Um dia, porém, as massas se uniram e exigiram diretas já! Pegaram gosto
pela liberdade do voto e elegeram primeiro os constituintes, depois os
presidentes. Aos poucos tudo foi melhorando: derrubou-se a inflação; ampliou-se
o nível de emprego; a educação e a saúde experimentaram sensíveis avanços. Mas
não foi só isso! Carros novos, viagens, hospedagens em locais finos, estudos no
exterior, churrasco aos domingos, cerveja à vontade... tudo passou a ser
possível a um número crescente de pessoas. Aprendemos, enfim, a lutar por
nossos direitos.
Até que, em outro dia – assim do nada e ainda na metade do caminho –, o
sonho de liberdade pareceu se arrefecer. De repente a coisa desandou ao ponto
de haver quem, com saudades do tronco e do relho, virasse as costas ao projeto
de país que despontava e fosse às ruas implorar pela volta da ditadura e a
perda de direitos e conquistas sociais. Loucura coletiva? Ou, como diria o
chavão... ‘quem nunca comeu mel, quando come se lambuza’? Por mais que tente,
não sei explicar o que aconteceu. Vai ver, tendo o servilismo enraizado no DNA,
nosso sonho maior não seja nada além de uma calça velha, azul e desbotada...
(Pseudônimo: ‘Viajante das Palavras’)