terça-feira, 20 de novembro de 2018

1°lugar do Prêmio 2018



1lugar:
André Luís Soares.
Crônica: Asas da Liberdade pra quê?
Cidade: Guarapari/ES.
Pontuação: 494.




ASAS DA LIBERDADE PRA QUÊ?

    Nos anos setenta, do século passado, havia uma conhecida marca de jeans cujo jingle dizia: ‘liberdade é uma calça velha, azul e desbotada, que você usa quando quiser, do jeito que quiser’. No entanto, liberdade é algo bem mais complexo e difícil de ser conceituado do que poderiam supor os marqueteiros da ‘Us-Top’.
      No Brasil – último país independente da América a abolir a escravidão –, a liberdade tem oscilado entre o patamar utópico difundido entre os melhores filósofos e a vontade mesquinha dos poderosos.       Nação onde mais se matam ambientalistas e líderes sindicais ou comunitários, por aqui a liberdade é sinônimo de perigo, especialmente quando vinculada a questões de interesse coletivo. Dessa forma, incorrendo no risco de ser egoísta, a maioria acaba buscando-a somente no plano individual onde, não raro, é confundida com a alegria fugaz decorrente da embriaguez excessiva, da direção perigosa e da música ouvida em decibéis suficientes para incomodar vizinhos. Daí a natural indagação: que grau de liberdade os brasileiros querem?
      Tomando-se por base a cultura do jeitinho e da lei de Gerson, é de se imaginar que a plena liberdade não resultaria em boa coisa em terras tupiniquins, visto ser impensável conciliar ordem e progresso ao amplo direito de todos fazerem tudo o que lhes der na telha. Contudo, há que reconhecer que, para ser feliz, o brasileiro necessita de algumas pequenas permissividades. Povo secularmente acostumado a ter pouco, foi somente nas últimas duas ou três décadas que – em grande medida – a população pôde desfrutar alguns pequenos confortos.
      A cervejinha é, por certo, um desses mínimos regozijos. Quando eu era criança, quase todos os homens adultos bebiam cachaça ou variações rudimentares igualmente fortes. A escassez de grana os obrigava a adotarem formas rápidas e baratas de se embebedar. Dificilmente alguém falava em vinho que não fosse pra lá de fuleiro. Champanhe era só aquele líquido que os vencedores derramavam na cabeça, uns dos outros, ao fim das corridas de Fórmula 1. Mesmo o chopp ainda parecia excesso inatingível para a maioria que, a partir da segunda semana de cada mês, não mais sabia a cor do dinheiro.
     O turismo é outro prazer que o brasileiro descobriu recentemente. Não faz muitos anos, parte considerável das viagens tinha por único destino a casa de parentes. Hotéis, resorts, viagem de avião, aluguel de veículos... nem pensar! Com a chegada das visitas era um verdadeiro deus-nos-acuda: os anfitriões se viam obrigados a dormir ainda mais apertados que de costume, além de terem que acrescentar mais água ao já excessivamente ralo caldo de feijão. Bem ao estilo das piores comédias-pastelão, não raro essas incursões terminavam em desavenças familiares, cuja vingança era obrigar os intrusos a devolverem a hospitalidade nas férias seguintes.
     Não obstante, o automóvel constitui o ponto mais elevado da saga brasileira em busca de liberdade. Por várias décadas, nossas ruas e estradas eram o paraíso dos veículos feios, sujos, velhos e barulhentos. Fato ainda pior é que poucos motoristas tinham condições de encher o tanque ou fazer revisões no motor. Muitos carros só andavam no cheiro. O resultado dessa triste combinação era a costumeira cena em que se viam pessoas sofrendo para empurrar as latas-velhas até o posto de gasolina ou até a oficina mais próxima – de onde algumas jamais sairiam.
       No mais, o brasileiro médio vivia na corda-bamba, matando um leão por dia. Espremido entre a fome e as dívidas, não lhe restava outra coisa a fazer senão espichar os olhos invejosos para o deleite material que cabia somente aos pouquíssimos privilegiados, os quais faziam viagens internacionais, exibiam automóveis luxuosos, mandavam os filhos estudarem na Europa. Enfim... faziam todas as coisas possíveis aos que deitam e rolam na grana. Liberdade? Esse termo era suscitado – à meia-boca e à meia-luz – entre uma e outra ditadura. À voz do povo era dado apenas o direito de transladar entre o grito de gol e o batuque do samba. Quem ousasse voar fora desse quadrado tinha suas asas cortadas, à custa de tortura e morte.
      Um dia, porém, as massas se uniram e exigiram diretas já! Pegaram gosto pela liberdade do voto e elegeram primeiro os constituintes, depois os presidentes. Aos poucos tudo foi melhorando: derrubou-se a inflação; ampliou-se o nível de emprego; a educação e a saúde experimentaram sensíveis avanços. Mas não foi só isso! Carros novos, viagens, hospedagens em locais finos, estudos no exterior, churrasco aos domingos, cerveja à vontade... tudo passou a ser possível a um número crescente de pessoas. Aprendemos, enfim, a lutar por nossos direitos.
      Até que, em outro dia – assim do nada e ainda na metade do caminho –, o sonho de liberdade pareceu se arrefecer. De repente a coisa desandou ao ponto de haver quem, com saudades do tronco e do relho, virasse as costas ao projeto de país que despontava e fosse às ruas implorar pela volta da ditadura e a perda de direitos e conquistas sociais. Loucura coletiva? Ou, como diria o chavão... ‘quem nunca comeu mel, quando come se lambuza’? Por mais que tente, não sei explicar o que aconteceu. Vai ver, tendo o servilismo enraizado no DNA, nosso sonho maior não seja nada além de uma calça velha, azul e desbotada...

(Pseudônimo: ‘Viajante das Palavras’)

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