3⁰ lugar:
Regina Ruth Rincon Caires.
Crônica: Um Novo Olhar.
Cidade: Araçatuba/SP.
Pontuação: 463.
UM NOVO OLHAR
Enquanto terminava o almoço, Bibiana, de quando em
quando, passava os olhos pela belezura do pavê que fizera para presentear a
irmã. Naquele dia, não haveria leitura nem escrita. Conseguira ler a receita,
guardada por tantos anos, do velho almanaque distribuído pela farmácia do Seu Chiquinho. Ali, sozinha, orgulhosa, decifrando as palavras, foi capaz de juntar os
ingredientes na medida exata, tal qual estava descrito. E ficou feliz porque a
aparência do prato era a mesma da figura estampada na página.
O sonho começara lá atrás.
Bibiana sempre fora habilidosa com as mãos. O
jardim da casa era um canteiro de rosas multicores. Sabia, como ninguém, fazer
enxertos de diferentes espécies e, desta maneira, era comum perceber numa mesma
touceira, uma variedade enorme de tons, texturas e tamanhos de rosas. Também
era especialista na cozinha. Mãos de fada, como todos diziam. Mas cozinhava o
trivial, os pratos simples, os doces caseiros.
Sem leitura, passava horas olhando as gravuras dos
livros de receitas. Alisava as muitas folhas escritas que recebia das comadres,
folhas juntadas por anos e anos, nas quais estavam explicadas as medidas, os
ingredientes, o modo de preparo dos mais deliciosos quitutes.Ela as recebia e
guardava, dando a impressão de que as lia. Poucos sabiam que era analfabeta.
Logo que casou, o marido, de família de políticos,
queria que ela conseguisse o título de eleitor. Naquela época, era exigido
escrever o nome. Depois de muito treino, de inúmeras cópias, conseguiu, enfim,
desenhar aquelas letrinhas e receber o documento. E, assim, era vista como
letrada. Mas não era. Infelizmente, não era.
Quando os filhos já estavam crescidos, em conversa
com Alice, sua irmã, pediu a ela que lhe ensinasse a escrever. Combinaram que
as aulas seriam nas terças e quintas-feiras, no período da tarde, sem a
presença de outras pessoas, em segredo. E assim foi feito. Nos dois dias da
semana, por meses e meses, Bibiana apressava os afazeres, e, enquanto as
crianças estavam na escola, seguia para a casa da irmã. Levava, dentro de um
saco de papel, a cartilha, lápis, borracha e o caderno diário com a tarefa
feita no silêncio da noite.
E foi aprendendo. A letra era linda. Obedecia, com
primor, o entremeio do caderno de caligrafia. Alegria maior foi a leitura.
Ficou emocionada quando conseguiu ler a primeira palavra. Com a simples
compreensão daquelas letrinhas juntas,sentiu um arroubo. Maravilhada,
empenhou-se ainda mais. De início, imaginava um pequeno voo, mas, a cada dia,
era invadida por uma sensação profunda de realização. Não controlava as asas.
Epifania pura.
No início da tarde, abraçada à
terrina,cuidadosamente envolta, prepara-se para a caminhada. Sente-se inteira,
briosa. No portão, resolve que mudará o trajeto. Não irá pela rua de baixo, que
corta a vila por entre as casas. Irá pelo centro. Faz muito tempo que não passa
por lá. E que escolha acertada ela fez!
A rua do comércio estava quase deserta e, Bibiana,
com passos lentos, ia olhando os detalhes. O açougue do Seu Antero tinha um
letreiro: Açougue Ipiranga. O bazar da Ivani era Loja Santa Terezinha, a
sapataria do Seu Celso era Calçados Modelo, a farmácia era Drogaria São Jorge,
o hotel do Seu Valdemar era Pousada Vila Rica. Asensação de que uma cortina
fora descerrada ficava cada vez mais forte. Compreendia cada palavra,
inteirava-se. Lia o nome da rua, o letreiro do cinema. Descobria um mundo novo.
A alegria era tamanha que Bibiana queria contar a todos, sentia vontade de
gritar aos quatro cantos o seu contentamento. Mas, qual o que! Comedida, de
costumes pudicos, não lhe cairia bem. Conteve-se. Se fosse criança, com
certeza, estaria saltitando, caminhando aos trotes.
A cada passo, a gratidão se avolumava no peito.
Alice, com sua generosidade derramada, não poderia avaliar a magnitude da
façanha. Um milagre. Bibiana não era mais a mesma. Agigantara-se na coragem.
Transbordava autoestima. Por gosto, chegaria lá, na casa da irmã, e se lançaria
num abraço desmesurado. Queria mostrar a gratidão que sentia. Caminhava e
imaginava... Como seria bom abraçá-la, como queria abraçá-la! Mas, sabidamente,
isso não aconteceria. Não era costume. Na família, todos se amavam, mas eram
contidos na demonstração de afeto. Exceto com as crianças. Não entendia em que
lugar acontecia a quebra, mas acontecia. Havia um bloqueio, infelizmente.
Alice abre a porta e percebe que Bibiana está
emocionada. Compreendeu, de pronto, que ela não viera para a costumeira sessão
de estudo. Aliás, havia algum tempo, notara que a irmã estava alfabetizada. Só
não comentou antes porque sentia a paixão de Bibiana pelas lições. Queria que ela
mesma chegasse a essa conclusão: enfim, sabia ler e escrever.E esperou.
Foi uma tarde de muita prosa, de risadase
lembranças. Como eram próximas! Quanto cuidado, quanta cumplicidade velada! O
abraço morava no olhar, e a gratidão, na alma – eternamente.
(Pseudônimo: Clarice dos Anjos)
Nenhum comentário:
Postar um comentário