terça-feira, 20 de novembro de 2018

3°lugar do Prêmio 2018




3⁰ lugar:
Regina Ruth Rincon Caires.
Crônica: Um Novo Olhar.
Cidade: Araçatuba/SP.
Pontuação: 463.







UM NOVO OLHAR


       Enquanto terminava o almoço, Bibiana, de quando em quando, passava os olhos pela belezura do pavê que fizera para presentear a irmã. Naquele dia, não haveria leitura nem escrita. Conseguira ler a receita, guardada por tantos anos, do velho almanaque distribuído pela farmácia do Seu Chiquinho.         Ali, sozinha, orgulhosa, decifrando as palavras, foi capaz de juntar os ingredientes na medida exata, tal qual estava descrito. E ficou feliz porque a aparência do prato era a mesma da figura estampada na página.
       O sonho começara lá atrás.
    Bibiana sempre fora habilidosa com as mãos. O jardim da casa era um canteiro de rosas multicores. Sabia, como ninguém, fazer enxertos de diferentes espécies e, desta maneira, era comum perceber numa mesma touceira, uma variedade enorme de tons, texturas e tamanhos de rosas.                     Também era especialista na cozinha. Mãos de fada, como todos diziam. Mas cozinhava o trivial, os pratos simples, os doces caseiros.
     Sem leitura, passava horas olhando as gravuras dos livros de receitas. Alisava as muitas folhas escritas que recebia das comadres, folhas juntadas por anos e anos, nas quais estavam explicadas as medidas, os ingredientes, o modo de preparo dos mais deliciosos quitutes.Ela as recebia e guardava, dando a impressão de que as lia. Poucos sabiam que era analfabeta.
      Logo que casou, o marido, de família de políticos, queria que ela conseguisse o título de eleitor.        Naquela época, era exigido escrever o nome. Depois de muito treino, de inúmeras cópias, conseguiu, enfim, desenhar aquelas letrinhas e receber o documento. E, assim, era vista como letrada. Mas não era. Infelizmente, não era.
    Quando os filhos já estavam crescidos, em conversa com Alice, sua irmã, pediu a ela que lhe ensinasse a escrever. Combinaram que as aulas seriam nas terças e quintas-feiras, no período da tarde, sem a presença de outras pessoas, em segredo. E assim foi feito. Nos dois dias da semana, por meses e meses, Bibiana apressava os afazeres, e, enquanto as crianças estavam na escola, seguia para a casa da irmã. Levava, dentro de um saco de papel, a cartilha, lápis, borracha e o caderno diário com a tarefa feita no silêncio da noite.
      E foi aprendendo. A letra era linda. Obedecia, com primor, o entremeio do caderno de caligrafia. Alegria maior foi a leitura. Ficou emocionada quando conseguiu ler a primeira palavra. Com a simples compreensão daquelas letrinhas juntas,sentiu um arroubo. Maravilhada, empenhou-se ainda mais. De início, imaginava um pequeno voo, mas, a cada dia, era invadida por uma sensação profunda de realização. Não controlava as asas. Epifania pura.
     No início da tarde, abraçada à terrina,cuidadosamente envolta, prepara-se para a caminhada.              Sente-se inteira, briosa. No portão, resolve que mudará o trajeto. Não irá pela rua de baixo, que corta a vila por entre as casas. Irá pelo centro. Faz muito tempo que não passa por lá. E que escolha acertada ela fez!
    A rua do comércio estava quase deserta e, Bibiana, com passos lentos, ia olhando os detalhes. O açougue do Seu Antero tinha um letreiro: Açougue Ipiranga. O bazar da Ivani era Loja Santa Terezinha, a sapataria do Seu Celso era Calçados Modelo, a farmácia era Drogaria São Jorge, o hotel do Seu Valdemar era Pousada Vila Rica. Asensação de que uma cortina fora descerrada ficava cada vez mais forte. Compreendia cada palavra, inteirava-se. Lia o nome da rua, o letreiro do cinema.             Descobria um mundo novo. A alegria era tamanha que Bibiana queria contar a todos, sentia vontade de gritar aos quatro cantos o seu contentamento. Mas, qual o que! Comedida, de costumes pudicos, não lhe cairia bem. Conteve-se. Se fosse criança, com certeza, estaria saltitando, caminhando aos trotes.
   A cada passo, a gratidão se avolumava no peito. Alice, com sua generosidade derramada, não poderia avaliar a magnitude da façanha. Um milagre. Bibiana não era mais a mesma. Agigantara-se na coragem. Transbordava autoestima. Por gosto, chegaria lá, na casa da irmã, e se lançaria num abraço desmesurado. Queria mostrar a gratidão que sentia. Caminhava e imaginava... Como seria bom abraçá-la, como queria abraçá-la! Mas, sabidamente, isso não aconteceria. Não era costume. Na família, todos se amavam, mas eram contidos na demonstração de afeto. Exceto com as crianças. Não entendia em que lugar acontecia a quebra, mas acontecia. Havia um bloqueio, infelizmente.
     Alice abre a porta e percebe que Bibiana está emocionada. Compreendeu, de pronto, que ela não viera para a costumeira sessão de estudo. Aliás, havia algum tempo, notara que a irmã estava alfabetizada. Só não comentou antes porque sentia a paixão de Bibiana pelas lições. Queria que ela mesma chegasse a essa conclusão: enfim, sabia ler e escrever.E esperou.
     Foi uma tarde de muita prosa, de risadase lembranças. Como eram próximas! Quanto cuidado, quanta cumplicidade velada! O abraço morava no olhar, e a gratidão, na alma – eternamente.

(Pseudônimo: Clarice dos Anjos)

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