quarta-feira, 4 de março de 2015

6° lugar no Prêmio Radiotelegrafista Amaro Pereira de Crônica



6° lugar no Prêmio Radiotelegrafista Amaro Pereira de Crônica
Nome: Luiz Alberto dos Santos.
Cidade que representa: Coruripe/AL.
Pseudônimo: eleaesse.
Crônica: kisuco e kaviar.
                                      


kisuco e kaviar


            Início de 1.970. A escuridão e o absoluto silêncio tomavam conta da, ainda virgem, floresta amazônica. Nunca se vira, em toda a existência desta floresta, tamanho breu. Tão fúnebre silêncio. Apesar do céu limpíssimo, nenhuma estrela. Era noite de lua, mas, onde estaria a lua?  Uma limpíssima noite e... sem lua ou estrelas. Cadê os bichinhos da noite? Nem as corujas, nem os vagalumes, nem os sapos cururus... Nem as cachoeiras, nem os rios e igarapés. Nem uma folha, entre milhões, balançava. Era sábado! Dia de festa na floresta!... Porque todo aquele e tenebroso silêncio!?... Porque aquele noturno céu, de cor tão, tão, estranha, pesada?...
Sim, a grande floresta estava quieta, cansada. Desgostosa e depressiva. Por volta das cinco da tarde, antes da noite chegar de fato, a virgem floresta bem que fizera grande algazarra. Uma senhora manifestação!  A grande floresta se mexeu, sim senhor. O sopro do grande vento, agitando cada árvore; o redemoinho nervoso nos rios e igarapés; o agudo tororó das grandes cachoeiras; o estardalhaço nos bicos das mil aves; os urros medonhos dos mamíferos; o deslizar e o assovio nervoso das grandes e pequenas serpentes e os olhares imensamente inocentes de todos os filhotes. Oh, mas não era o tipo de  manifestação em que se espera colher bons resultados. Agrande floresta já sabia que, infelizmente era causa perdida, inrreversível. Mesmo assim... Quem sabe, um milagre... Arrepiante, ver os feixes de luzes violetas, na correria dos espíritos dos grandes caciques, saídos das malocas e tabas, sagradas e eternas, para virem, também eles, defender a floresta. Sua floresta.
Porém... Nada! Nada adiantou. A força e a decisão, o destino, estavam já escritos e  sacramentados, num rico palácio em Brasília. E hoje, este palácio estava em festa. Com a poderosa rede-povo mostrando ao vivo, em horário nobre.
 Oito da noite. Cansada. Uma floresta inteira, a maior do planeta, totalmente parada, estagnada. À mercê duma festa. Numa cidade cujo nome era Brasília. Brasília, porra,  ainda uma simples adolescente e designando o destino de centenas de vidas, flora e fauna. Uma adolescente, porra, de vestidinho curto, buçanguinha ainda sem pelos, e toda maquiada, bêbada e bancando o festão.
Sim, festa esta, ansiosamente aguardada pelos plebeus do país. Pobres corpos destituídos de quase tudo. Mal instruídos, mal alimentados... Desgovernados. Plebeus em corpos de plebeus... Mal aguardando chegar o final da novela das oito para, definitivamente, grudar os glóbulos dos olhos no vidro da TV. De nada adiantou a grandiosa manifestação no seio da maior flora e fauna do mundo. Os glóbulos dos olhos, profundamente grudados na tela hipnótica, deixam cegos e surdos, os plebeus. Danem-se, porra de onça, macaco, rios e árvores. Dane-se o vento, que nasce lá e chega tão fresquinho na cidade, assoprando com carinho seus calorentos barracos. O importante era a festa. E ela já ia começar. Tava na hora da pipoca e do kisuco de groselha. Alguns nem isso tinham; contentavam-se com um pedaço de pão seco e uma dose de cachaça. Mas, quem se importa com pão seco e kisuco de groselha, quando do outro lado da TV existe uma festa com whisk e caviar, e tanto fidalgo(a) bonito pra se ver, invejar?!...
Haja índio, onça, macaco, rio e árvore, para um plebeu desgrudar os glóbulos. Para pelo menos raciocinar, talvez até chamar atenção dos outros plebeus. E haja cachaça, mortadela e kisuco.
E pior é que estes plebeus nem podem voltar no tempo ― como o Super-Homem fez no filme.
            Apolônio Helmam Brasil, embasbacado, caminhava. Caminhava no meio duma multidão. Uma multidão de fardas, ternos e pomposos vestidos. Uma multidão de fidalgos fardados ou não. Talvez fosse apenas uma impressão, mas juraria que aqueles fidalgos caminhavam nas pontas dos pés e mantinham os queixos estranhamente levantados, empinados. Que olhares frios, cínicos! Nossa!... Que pessoas estranhas!... Pareciam seres de outro mundo, desembarcados numa grande festa, realizada num planeta inferior,  cujo nome era Brasília. Ah,  talvez fosse só impressão de Apolônio.
Caminhava agora junto ao homem de terno, que não se afastava um metro dele. Inclusive  Apolônio, por duas vezes alertou a esse homem que ele precisava buscar seu maço de cigarros, deixado no bolso da sua roupa, quando exigiram que ele a trocasse pelo macacão verde-amarelo e o capacete branco. Foi lhe comunicado que não ficava bem ele fumar logo ali, no meio de tanta gente importante. Apolônio olhou em volta e viu dezenas de mãos segurando charutos, cigarrilhas, cigarros e dois estrangeiros tragando cachimbos. Olhou espantado para o homem de terno, que meteu a mão no bolso.
―Tome!... Tome um dos meus.  Mas vá fumar no banheiro!...
O homem de terno, bem cedo chagara na casa de Apolônio, intimando que ele o acompanhasse urgente à Brasília, que a empresa tinha uma tarefa especialíssima. Afinal Apolônio  o melhor operador de máquina da grande empresa.
Que festa. Bem em cima do majestoso palanque, uma solitária corneta, que trazia pendurada uma bandeirola do Brasil, começou a soar. Aos poucos foi se fazendo silêncio e a corneta tornou-se ainda mais solitária. Toque do silêncio, toque de recolher, toque da alvorada... Toques.
No banheiro, Apolônio, na metade da mijada e do cigarro, ouvia a corneta. Ouviu
também a já familiar voz do seu implacável seguidor de terno e óculos escuros.
―Senhor Apolônio, olhe pra mim e preste bem atenção: assim que a corneta parar, o senhor vai encaminhar-se até sua máquina que está estacionada no meio do gramado. Preste bem atenção, pra não ter errada. O senhor vai caminhar até a máquina. Caminhe marchando, igual no sete de setembro, com os passos bem fortes.  Suba bem devagar na máquina e, antes de entrar na cabine, vire-se e acene na direção do palanque das autoridades, depois ligue o motor. É pra ligar e acelerar com vontade! É pra todo mundo ouvir!... Ah, sorria sempre. Nada de cara feia! Sorria sempre. Não repare pros aplausos, nem no foguetório. Acelere, acelere a máquina e derrube sem pena o pé de castanheira que está bem na frente da máquina. É pra botar a bicha abaixo com vontade!... Vou repetir: acelere fundo, atropele e passe por cima da árvore, e sorria sempre!... O senhor tem dentes bonitos, pode abusar. Vê se não esquece: quando a castanheira tiver deitada, é para passar por cima com vontade!... Depois o senhor pode descer da máquina. Desça e acene de novo para o palanque. Não esqueça: sempre sorrindo. Sempre sorrindo!...
Apolônio pediu mais um cigarro e sentiu vontade de urinar, de novo. Saiu do enfumaçado banheiro e um suor gelado começou a escorrer na sua coluna vertebral. A lona de plástico verde–amarelo estava sendo retirada da sua máquina. Primeiro ficou espantado, depois achou ridículo, sua tão confiável máquina de trabalho, toda enfeitada com balões multicoloridos e mil bandeirolas. Dezenas de adesivos de empresas, bancos, lojas e até duma emissora de TV. Também os símbolos dos Três Poderes. Ah, sua valente máquina mais parecia um pavão enfeitado. Pra quê, pelo amor de Deus, aqueles dois fuzileiros navais, prostrados ao lado de sua brava máquina, armados até os dentes e com pesadas mochilas nas costas?!... Para quem, pelo amor de Deus, os dois davam a sisuda continência?!...
            A corneta parou de repente e Apolônio pensou que era a hora. Chegou a marchar três passos, mas foi contido pela sombra de terno escuro. Ainda não era a hora. A banda da marinha iniciou a execução do hino nacional e os que estavam no palanque, inclusive os de trajes civis, bateram continência. Pouco a pouco as centenas de convidados espalhados pelo vasto gramado, iam aderindo à seriíssima continência. Bastava que olhasse para o outro, que já estava na típica posição militar, para imediatamente, ele também levar a esticada mão até a testa: sisuda continência. Daí a alguns minutos todos estavam voltados para o imponente palanque, numa absurda e generalizada continência. A década era de 70. E os anos, de chumbosas continências. Ah, quantas e quantas mãos, batidas em tantas testas de ferro. Ou de chumbo.
            Ao término do Hino, observou-se um minuto de profundo silêncio e a seguir ouviu-se uma poderosa voz saída das caixas de som:
            “ ―Atenção, atenção senhoras e senhores. Com a palavra o senhor excelentíssimo Presidente da República, General...”
            O General Presidente falou cinqüenta e seis minutos. Depois foi a vez ministro de gabinete, também general, que só falou quarenta e cinco minutos, passando a vez para o general ministro dos transportes, que falou um pouquinho mais, dando o lugar para o general, ministro das forças armadas, que depois passou para o general...
            Incrível, fantástico... extraordinário!... Duas horas e pouco de intensa falação, general-izada e as centenas de fidalgos ali em pé, com as mãos em riste, na testa.  Porra, será que nem câimbra sentiam? Por pouco Duque de Caxias, outro General, não arrebenta sua catacumba e vem participar daquela delícia.
            E a corneta recomeçou seu soar melancólico. De repente começou e de repente parou.
             ―É agora, Senhor Apolônio!... Não esqueça o que lhe falei!... Se mexa, homem!...
            E Apolônio marchava ao encontro da sua enfeitada máquina. Segurava com força o cano de ferro que empunhava a grande bandeira do Brasil. Os pés pareciam duas bolas de chumbo e as atléticas pernas, tão acostumadas a duros pedais de freios e embreagens, agora tremiam e tremiam. Quanto mais marchava, mais longe parecia ficar a bendita máquina.
            Enfim, conseguiu sentar no banco da cabine. Os refletores e flashes de dezenas de fotos o cegavam. Custou a achar o tão familiar botão vermelho que ligava a máquina. Não podia deixar de sorrir. “–Sorria sempre!...” E pensar que tudo isso tava sendo transmitido ao vivo... O que, neste momento, estariam comentando, sua esposa e filho!?... E os vizinhos!?... E os colegas de trabalho!?... Acelerou.
            Acelerou com raiva como se quisesse estrangular o poderoso motor. Jorros de fumaça negra fugiam pelo cano de escape. Engrenou a marcha e partiu pra cima da secular árvore. O silêncio de todos, cortado apenas pelo ronco do motor, permitiu ouvir-se nitidamente a pancada seca e a seguir o estalo e o sinistro som do baque da secular árvore de encontro ao solo. Por um segundo Apolônio julgou ver aquela árvore sorrindo para ele. Nunca soube decifrar aquele sorriso. Por toda sua vida, Apolônio passou tentando entender que  diabo de sorriso fora aquele. Jamais conseguiu.
            Imenso. Grandioso. Quase vinte minutos e o foguetório não terminava. Estrondoso. Aplausos, gritaria, tiros pro alto... Apolônio mal saltou da máquina e já foi seguro num braço pelo seu implacável seguidor de terno e óculos escuros. Devido ao barulho quase não ouviu: “―Tome um cigarro! Mas vá fumar no banheiro!...

                                                EM VÁRIAS PRAÇAS DO MUNDO
                                   MÃES CHORAM DESENGANADAS
                                   FILHOS MORTOS OU TORTURADOS
                                   BANDEIRAS CONTRA ARMADAS

                                   EM VÁRIAS PRAÇAS DO MUNDO
                                   MÃES CHORAM DESESPERADAS
                                   FILHOS PRESOS E VICIADOS
                                   ELITES E FAVELADOS

                                   QUAL SERÁ A PRAÇA DO MUNDO
                                   QUE ABRIGARÁ TODAS AS MÃES
                                   MÃES DOS RIOS E DOS PEIXES
                                   DA ONÇA E DO MACACO
                                   MÃES DE TODA A PASSARADA
                       
                                   QUE PRAÇA ABRIGARÁ AS MÃES
                                   DA FLORESTA ANIQUILADA?...

            Não. Nunca, nem ninguém soube direito o que aconteceu. Plebeu nasce e morre plebeu. Por isso juram que não sabem o que houve em suas TVs, naquele sábado à noite, precisamente no início da transmissão da grandiosa festa. Os pedaços de pão seco e os pacotinhos de kisuco, sabor groselha, já estavam em cima das velhas, tortas e desforradas mesas, carcomidas pelos cupins. As garrafas de cachaça vagabunda foram retiradas de baixo dos tanques de lavar molambo, assustando as ratazanas que lá fazem morada. A mortadela ficou fiado e o dono do armazém atendeu de mal vontade, dizendo que só podia ceder meio quilo.
            Mas, que interessava isso?!... O importante, para a rude plebe, era a transmissão da grande festa em Brasília, que já ia começar. “Cada roupa, cada sapato, pra gente ver!...” “E os cordão de ouro?! E os brinco?!” “Ah, se meu filho fosse das Forças Armadas...”
             O que aconteceu? Ah, sim, quando a TV mostrou a primeira imagem do festão, todos, todos os televisores do país perderam a freqüência e as imagens sumiram. Em todas TVs do país! Até aí, os plebes perceberam. Só não ouviram  foi o grande estrondo do trovão e a inconfundível voz de Gilberto Gil, soando dos autos falantes das TVs sem imagem. E era Gil, quem cantava em alto e bom tom: “Vai começar circular o expresso, dois, dois, dois, dois; que parte direto de Bonsucesso, pra depois...”
            Não. Isso ninguém viu nem ouviu. Talvez por ter durando só dois ou três minutos. Tempo absolutamente curto, para os olhos e ouvidos da plebe. Então, logo tudo voltou ao normal. As imagens retornaram. Até mais nítidas.
A plebe é rude. Não, não se pode, nem se deve culpá-los, crucificá-los. Seria covardia. Mas não tem como passar despercebido. Plebe rude de olhos e de ouvidos, incrivelmente rude de cabeça. Talvez o pão seco e o kisuco, impeçam que acordem, raciocinem. Sim, o consumo diário destes famigerados produtos, causam irreversíveis danos aos seus cérebros. Mantém, porém, a notável capacidade de, quase todos os dias, retirarem os glóbulos dos olhos e grudá-los no vidro da TV. Os adesivos usados como grude atendem por diferentes nomes: futebol, carnaval, novela e festa de rico. Em épocas de Copa do Mundo, o grude tem o prazo de validade adulterado, para que possa valer os trinta dias do mês. Geralmente acontece em junho.
            Existem perguntas, cujas respostas sofrem a gravíssima ameaça de ficarem, anos e anos, retidas na estratosfera terrestre. Ou, o que é pior: perderem-se para sempre nos confins do universo. Não!... Não são perguntas de respostas difíceis. Não são perguntas de respostas impossíveis. O difícil, quase impossível, é manter essas respostas presas entre os dedos, ou, bem seguras na palma da mão. Difícil mantê-las pelo menos ao alcance dos glóbulos dos olhos desses quase inocentes plebeus.
Como, como achar resposta para uma floresta ―a maior do planeta― totalmente a mercê de vorazes criaturas, com seus sorrisos de hiena, numa festa grandiosa?!... Todas vestidas com fardas de gala e ternos importados.
 Como, como responder a espantosa passividade dos plebeus, batendo palmas e exibindo seus banguelas sorrisos, enquanto mãos de película extraem sua última máscara de oxigênio?!...
Como, como achar resposta para tanto whisk e caviar para tão poucos e tão pouco kisuco e pão seco para tantos?!...
Afinal, de que será feito o poderoso grude que cola olhos e vergonhas em simples retângulos de TV?!...
Que poder mágico existirá nos estômagos desses plebeus, para suportarem tanto, tanto pão seco com kisuco de groselha?!... Ano após ano!
Onde, onde será o fim do cosmos?!...
Haverá uma vela no fim do Buraco Negro?!...
Não, nem Apolônio, um simples operador de máquina, sabe como responder.
Sim. Apolônio apenas sabia que rinha que derrubar uma árvore, que estava impedindo o início da “ Obra do Século”.
FIM!
                                                  
(Pseudônimo: eleaesse)


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