6°
lugar no Prêmio Radiotelegrafista Amaro Pereira de Crônica
Nome: Luiz Alberto dos Santos.
Cidade que representa: Coruripe/AL.
Pseudônimo: eleaesse.
Crônica: kisuco e kaviar.
kisuco e kaviar
Início de 1.970. A
escuridão e o absoluto silêncio tomavam conta da, ainda virgem, floresta
amazônica. Nunca se vira, em toda a existência desta floresta, tamanho breu.
Tão fúnebre silêncio. Apesar do céu limpíssimo, nenhuma estrela. Era noite de
lua, mas, onde estaria a lua? Uma
limpíssima noite e... sem lua ou estrelas. Cadê os bichinhos da noite? Nem as
corujas, nem os vagalumes, nem os sapos cururus... Nem as cachoeiras, nem os
rios e igarapés. Nem uma folha, entre milhões, balançava. Era sábado! Dia de
festa na floresta!... Porque todo aquele e tenebroso silêncio!?... Porque
aquele noturno céu, de cor tão, tão, estranha, pesada?...
Sim, a grande
floresta estava quieta, cansada. Desgostosa e depressiva. Por volta das cinco
da tarde, antes da noite chegar de fato, a virgem floresta bem que fizera
grande algazarra. Uma senhora manifestação!
A grande floresta se mexeu, sim senhor. O sopro do grande vento,
agitando cada árvore; o redemoinho nervoso nos rios e igarapés; o agudo tororó
das grandes cachoeiras; o estardalhaço nos bicos das mil aves; os urros
medonhos dos mamíferos; o deslizar e o assovio nervoso das grandes e pequenas
serpentes e os olhares imensamente inocentes de todos os filhotes. Oh, mas não
era o tipo de manifestação em que se
espera colher bons resultados. Agrande floresta já sabia que, infelizmente era
causa perdida, inrreversível. Mesmo assim... Quem sabe, um milagre...
Arrepiante, ver os feixes de luzes violetas, na correria dos espíritos dos
grandes caciques, saídos das malocas e tabas, sagradas e eternas, para virem,
também eles, defender a floresta. Sua floresta.
Porém... Nada!
Nada adiantou. A força e a decisão, o destino, estavam já escritos e sacramentados, num rico palácio em Brasília.
E hoje, este palácio estava em festa. Com a poderosa rede-povo mostrando ao
vivo, em horário nobre.
Oito da noite. Cansada. Uma floresta inteira,
a maior do planeta, totalmente parada, estagnada. À mercê duma festa. Numa
cidade cujo nome era Brasília. Brasília, porra,
ainda uma simples adolescente e designando o destino de centenas de
vidas, flora e fauna. Uma adolescente, porra, de vestidinho curto, buçanguinha
ainda sem pelos, e toda maquiada, bêbada e bancando o festão.
Sim, festa esta,
ansiosamente aguardada pelos plebeus do país. Pobres corpos destituídos de
quase tudo. Mal instruídos, mal alimentados... Desgovernados. Plebeus em corpos
de plebeus... Mal aguardando chegar o final da novela das oito para,
definitivamente, grudar os glóbulos dos olhos no vidro da TV. De nada adiantou
a grandiosa manifestação no seio da maior flora e fauna do mundo. Os glóbulos
dos olhos, profundamente grudados na tela hipnótica, deixam cegos e surdos, os
plebeus. Danem-se, porra de onça, macaco, rios e árvores. Dane-se o vento, que
nasce lá e chega tão fresquinho na cidade, assoprando com carinho seus
calorentos barracos. O importante era a festa. E ela já ia começar. Tava na
hora da pipoca e do kisuco de groselha. Alguns nem isso tinham; contentavam-se
com um pedaço de pão seco e uma dose de cachaça. Mas, quem se importa com pão
seco e kisuco de groselha, quando do outro lado da TV existe uma festa com whisk
e caviar, e tanto fidalgo(a) bonito pra se ver, invejar?!...
Haja índio, onça,
macaco, rio e árvore, para um plebeu desgrudar os glóbulos. Para pelo menos
raciocinar, talvez até chamar atenção dos outros plebeus. E haja cachaça,
mortadela e kisuco.
E pior é que estes
plebeus nem podem voltar no tempo ― como o Super-Homem fez no filme.
Apolônio Helmam Brasil,
embasbacado, caminhava. Caminhava no meio duma multidão. Uma multidão de
fardas, ternos e pomposos vestidos. Uma multidão de fidalgos fardados ou não.
Talvez fosse apenas uma impressão, mas juraria que aqueles fidalgos caminhavam
nas pontas dos pés e mantinham os queixos estranhamente levantados, empinados.
Que olhares frios, cínicos! Nossa!... Que pessoas estranhas!... Pareciam seres
de outro mundo, desembarcados numa grande festa, realizada num planeta
inferior, cujo nome era Brasília. Ah, talvez fosse só impressão de Apolônio.
Caminhava agora
junto ao homem de terno, que não se afastava um metro dele. Inclusive Apolônio, por duas vezes alertou a esse homem
que ele precisava buscar seu maço de cigarros, deixado no bolso da sua roupa,
quando exigiram que ele a trocasse pelo macacão verde-amarelo e o capacete
branco. Foi lhe comunicado que não ficava bem ele fumar logo ali, no meio de
tanta gente importante. Apolônio olhou em volta e viu dezenas de mãos segurando
charutos, cigarrilhas, cigarros e dois estrangeiros tragando cachimbos. Olhou
espantado para o homem de terno, que meteu a mão no bolso.
―Tome!... Tome um
dos meus. Mas vá fumar no banheiro!...
O homem de terno,
bem cedo chagara na casa de Apolônio, intimando que ele o acompanhasse urgente
à Brasília, que a empresa tinha uma tarefa especialíssima. Afinal Apolônio o melhor operador de máquina da grande
empresa.
Que festa. Bem em
cima do majestoso palanque, uma solitária corneta, que trazia pendurada uma
bandeirola do Brasil, começou a soar. Aos poucos foi se fazendo silêncio e a
corneta tornou-se ainda mais solitária. Toque do silêncio, toque de recolher,
toque da alvorada... Toques.
No banheiro,
Apolônio, na metade da mijada e do cigarro, ouvia a corneta. Ouviu
também a já familiar voz do seu implacável seguidor de terno e óculos
escuros.
―Senhor Apolônio,
olhe pra mim e preste bem atenção: assim que a corneta parar, o senhor vai
encaminhar-se até sua máquina que está estacionada no meio do gramado. Preste
bem atenção, pra não ter errada. O senhor vai caminhar até a máquina. Caminhe
marchando, igual no sete de setembro, com os passos bem fortes. Suba bem devagar na máquina e, antes de
entrar na cabine, vire-se e acene na direção do palanque das autoridades,
depois ligue o motor. É pra ligar e acelerar com vontade! É pra todo mundo
ouvir!... Ah, sorria sempre. Nada de cara feia! Sorria sempre. Não repare pros
aplausos, nem no foguetório. Acelere, acelere a máquina e derrube sem pena o pé
de castanheira que está bem na frente da máquina. É pra botar a bicha abaixo
com vontade!... Vou repetir: acelere fundo, atropele e passe por cima da
árvore, e sorria sempre!... O senhor tem dentes bonitos, pode abusar. Vê se não
esquece: quando a castanheira tiver deitada, é para passar por cima com
vontade!... Depois o senhor pode descer da máquina. Desça e acene de novo para
o palanque. Não esqueça: sempre sorrindo. Sempre sorrindo!...
Apolônio pediu
mais um cigarro e sentiu vontade de urinar, de novo. Saiu do enfumaçado
banheiro e um suor gelado começou a escorrer na sua coluna vertebral. A lona de
plástico verde–amarelo estava sendo retirada da sua máquina. Primeiro ficou
espantado, depois achou ridículo, sua tão confiável máquina de trabalho, toda
enfeitada com balões multicoloridos e mil bandeirolas. Dezenas de adesivos de
empresas, bancos, lojas e até duma emissora de TV. Também os símbolos dos Três
Poderes. Ah, sua valente máquina mais parecia um pavão enfeitado. Pra quê, pelo
amor de Deus, aqueles dois fuzileiros navais, prostrados ao lado de sua brava
máquina, armados até os dentes e com pesadas mochilas nas costas?!... Para
quem, pelo amor de Deus, os dois davam a sisuda continência?!...
A corneta parou de
repente e Apolônio pensou que era a hora. Chegou a marchar três passos, mas foi
contido pela sombra de terno escuro. Ainda não era a hora. A banda da marinha iniciou
a execução do hino nacional e os que estavam no palanque, inclusive os de
trajes civis, bateram continência. Pouco a pouco as centenas de convidados
espalhados pelo vasto gramado, iam aderindo à seriíssima continência. Bastava
que olhasse para o outro, que já estava na típica posição militar, para
imediatamente, ele também levar a esticada mão até a testa: sisuda continência.
Daí a alguns minutos todos estavam voltados para o imponente palanque, numa
absurda e generalizada continência. A década era de 70. E os anos, de chumbosas
continências. Ah, quantas e quantas mãos, batidas em tantas testas de ferro. Ou
de chumbo.
Ao término do Hino,
observou-se um minuto de profundo silêncio e a seguir ouviu-se uma poderosa voz
saída das caixas de som:
“ ―Atenção, atenção
senhoras e senhores. Com a palavra o senhor excelentíssimo Presidente da
República, General...”
O General Presidente
falou cinqüenta e seis minutos. Depois foi a vez ministro de gabinete, também
general, que só falou quarenta e cinco minutos, passando a vez para o general
ministro dos transportes, que falou um pouquinho mais, dando o lugar para o
general, ministro das forças armadas, que depois passou para o general...
Incrível, fantástico...
extraordinário!... Duas horas e pouco de intensa falação, general-izada e as centenas de fidalgos ali em pé, com as mãos em
riste, na testa. Porra, será que nem
câimbra sentiam? Por pouco Duque de Caxias, outro General, não arrebenta sua
catacumba e vem participar daquela delícia.
E a corneta recomeçou
seu soar melancólico. De repente começou e de repente parou.
―É agora, Senhor Apolônio!... Não esqueça o
que lhe falei!... Se mexa, homem!...
E Apolônio marchava ao
encontro da sua enfeitada máquina. Segurava com força o cano de ferro que
empunhava a grande bandeira do Brasil. Os pés pareciam duas bolas de chumbo e
as atléticas pernas, tão acostumadas a duros pedais de freios e embreagens,
agora tremiam e tremiam. Quanto mais marchava, mais longe parecia ficar a
bendita máquina.
Enfim, conseguiu sentar
no banco da cabine. Os refletores e flashes de dezenas de fotos o cegavam.
Custou a achar o tão familiar botão vermelho que ligava a máquina. Não podia
deixar de sorrir. “–Sorria sempre!...” E pensar que tudo isso tava sendo
transmitido ao vivo... O que, neste momento, estariam comentando, sua esposa e
filho!?... E os vizinhos!?... E os colegas de trabalho!?... Acelerou.
Acelerou com raiva como
se quisesse estrangular o poderoso motor. Jorros de fumaça negra fugiam pelo
cano de escape. Engrenou a marcha e partiu pra cima da secular árvore. O
silêncio de todos, cortado apenas pelo ronco do motor, permitiu ouvir-se
nitidamente a pancada seca e a seguir o estalo e o sinistro som do baque da
secular árvore de encontro ao solo. Por um segundo Apolônio julgou ver aquela
árvore sorrindo para ele. Nunca soube decifrar aquele sorriso. Por toda sua
vida, Apolônio passou tentando entender que
diabo de sorriso fora aquele. Jamais conseguiu.
Imenso. Grandioso.
Quase vinte minutos e o foguetório não terminava. Estrondoso. Aplausos,
gritaria, tiros pro alto... Apolônio mal saltou da máquina e já foi seguro num
braço pelo seu implacável seguidor de terno e óculos escuros. Devido ao barulho
quase não ouviu: “―Tome um cigarro! Mas vá fumar no banheiro!...
EM
VÁRIAS PRAÇAS DO MUNDO
MÃES
CHORAM DESENGANADAS
FILHOS
MORTOS OU TORTURADOS
BANDEIRAS
CONTRA ARMADAS
EM
VÁRIAS PRAÇAS DO MUNDO
MÃES
CHORAM DESESPERADAS
FILHOS
PRESOS E VICIADOS
ELITES
E FAVELADOS
QUAL
SERÁ A PRAÇA DO MUNDO
QUE
ABRIGARÁ TODAS AS MÃES
MÃES
DOS RIOS E DOS PEIXES
DA
ONÇA E DO MACACO
MÃES
DE TODA A PASSARADA
QUE
PRAÇA ABRIGARÁ AS MÃES
DA
FLORESTA ANIQUILADA?...
Não. Nunca, nem ninguém
soube direito o que aconteceu. Plebeu nasce e morre plebeu. Por isso juram que
não sabem o que houve em suas TVs, naquele sábado à noite, precisamente no
início da transmissão da grandiosa festa. Os pedaços de pão seco e os
pacotinhos de kisuco, sabor groselha, já estavam em cima das velhas, tortas e
desforradas mesas, carcomidas pelos cupins. As garrafas de cachaça vagabunda
foram retiradas de baixo dos tanques de lavar molambo, assustando as ratazanas
que lá fazem morada. A mortadela ficou fiado e o dono do armazém atendeu de mal
vontade, dizendo que só podia ceder meio quilo.
Mas, que interessava
isso?!... O importante, para a rude plebe, era a transmissão da grande festa em
Brasília, que já ia começar. “Cada roupa, cada sapato, pra gente ver!...” “E
os cordão de ouro?! E os brinco?!” “Ah, se meu filho fosse das Forças
Armadas...”
O que aconteceu? Ah, sim, quando a TV mostrou
a primeira imagem do festão, todos, todos os televisores do país perderam a
freqüência e as imagens sumiram. Em todas TVs do país! Até aí, os plebes
perceberam. Só não ouviram foi o grande
estrondo do trovão e a inconfundível voz de Gilberto Gil, soando dos autos falantes
das TVs sem imagem. E era Gil, quem cantava em alto e bom tom: “Vai começar circular o expresso, dois,
dois, dois, dois; que parte direto de Bonsucesso, pra depois...”
Não. Isso ninguém viu
nem ouviu. Talvez por ter durando só dois ou três minutos. Tempo absolutamente
curto, para os olhos e ouvidos da plebe. Então, logo tudo voltou ao normal. As
imagens retornaram. Até mais nítidas.
A plebe é rude.
Não, não se pode, nem se deve culpá-los, crucificá-los. Seria covardia. Mas não
tem como passar despercebido. Plebe rude de olhos e de ouvidos, incrivelmente
rude de cabeça. Talvez o pão seco e o kisuco, impeçam que acordem, raciocinem.
Sim, o consumo diário destes famigerados produtos, causam irreversíveis danos
aos seus cérebros. Mantém, porém, a notável capacidade de, quase todos os dias,
retirarem os glóbulos dos olhos e grudá-los no vidro da TV. Os adesivos usados
como grude atendem por diferentes nomes: futebol, carnaval, novela e festa de
rico. Em épocas de Copa do Mundo, o grude tem o prazo de validade adulterado,
para que possa valer os trinta dias do mês. Geralmente acontece em junho.
Existem perguntas, cujas respostas sofrem a gravíssima ameaça
de ficarem, anos e anos, retidas na estratosfera terrestre. Ou, o que é pior:
perderem-se para sempre nos confins do universo. Não!... Não são perguntas de
respostas difíceis. Não são perguntas de respostas impossíveis. O difícil,
quase impossível, é manter essas respostas presas entre os dedos, ou, bem
seguras na palma da mão. Difícil mantê-las pelo menos ao alcance dos glóbulos
dos olhos desses quase inocentes plebeus.
Como, como achar
resposta para uma floresta ―a maior do planeta― totalmente a mercê de vorazes
criaturas, com seus sorrisos de hiena, numa festa grandiosa?!... Todas vestidas
com fardas de gala e ternos importados.
Como, como responder a espantosa passividade
dos plebeus, batendo palmas e exibindo seus banguelas sorrisos, enquanto mãos
de película extraem sua última máscara de oxigênio?!...
Como, como achar
resposta para tanto whisk e caviar para tão poucos e tão pouco kisuco e pão seco
para tantos?!...
Afinal, de que
será feito o poderoso grude que cola olhos e vergonhas em simples retângulos de
TV?!...
Que poder mágico
existirá nos estômagos desses plebeus, para suportarem tanto, tanto pão seco
com kisuco de groselha?!... Ano após ano!
Onde, onde será o
fim do cosmos?!...
Haverá uma vela no
fim do Buraco Negro?!...
Não, nem Apolônio,
um simples operador de máquina, sabe como responder.
Sim. Apolônio
apenas sabia que rinha que derrubar uma árvore, que estava impedindo o
início da “ Obra do Século”.
FIM!
(Pseudônimo: eleaesse)
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